"O regime russo está convencido de que, ao dizer às pessoas o que pensar, elas o pensarão. Extrair do espaço público as ideias que não são bem vistas e inserir aquelas que são apreciadas pelo regime é o zelo constante da mídia russa desde que Putin governa, portanto, há 20 anos, sem contar os precedentes na União Soviética". Entrevista com a jornalista italiana Anna Zafesova sobre a sociedade civil e as comunidades religiosas na Rússia em tempos de guerra na Ucrânia.
A entrevista é de Giordano Cavallari, publicada por Settimana News, 14-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Anna, você tem informações de que crianças ucranianas foram levadas para a Rússia?
Muitas crianças ucranianas estão agora na Rússia, de Mariupol e das áreas do Donbass ocupado: em geral com suas famílias, mas também sem seus pais ou parentes, especialmente crianças e adolescentes que estavam em orfanatos. 250 estavam em Mariupol. Para essas crianças, o governo declarou que está iniciando procedimentos de adoção em famílias russas.
Você acha que as famílias russas as adotarão?
Como muitas vezes acontece também na Rússia, as crianças nos orfanatos ucranianos são filhos de pais ainda vivos, privados de autoridade parental, devido a encarceramento ou dependência de álcool ou, simplesmente, porque são muito pobres e, portanto, sem condições de prover o sustento.
É surpreendente que essas crianças possam ser adotadas por famílias russas, enquanto os próprios orfanatos russos estão cheios de crianças com os mesmos problemas. Na Rússia, além disso, existe um estigma sobre a adoção, tanto que as (poucas) famílias que adotam crianças muitas vezes mudam de bairro ou cidade de residência para que os outros e as próprias crianças saibam de nada: uma prática oposta àquela europeia. As crianças mais velhas ficam praticamente nos orfanatos, especialmente agora que as adoções internacionais da Rússia estão bloqueadas.
Qual é o significado dessa operação?
Esta é claramente uma operação de propaganda, destinada a afirmar que o Donbass é território russo: portanto, as crianças que vivem lá também são russas. O agravante é querer mostrar que a Ucrânia as deixou sozinhas, enquanto a Rússia quer se tornar sua verdadeira grande família.
Do ponto de vista da propaganda, trata-se de uma mensagem muito forte. Imagino algum talk show que está valorizando as famílias ucranianas na Rússia e essas crianças também.
Existe um propósito para "russificá-las", como lemos?
No Donbass, fala-se principalmente o russo. Existe uma identidade russófona, mas ucraniana. Nos territórios ocupados, os militares russos imediatamente começaram a apreender livros escolares ucranianos de bibliotecas e escolas, juntamente com livros de literatura ucraniana.
Sei que na parte ocupada da região de Kherson as novas autoridades até cancelaram as férias escolares e as crianças irão à escola durante todo o verão para estudar o programa educacional russo: um claro programa de "russificação" de todas as crianças ucranianas, com e sem pais, no Donbass como na Rússia.
Que resultados o governo russo espera?
O regime russo está convencido de que, ao dizer às pessoas o que pensar, elas o pensarão. Extrair do espaço público as ideias que não são bem vistas e inserir aquelas que são apreciadas pelo regime é o zelo constante da mídia russa desde que Putin governa, portanto, há 20 anos, sem contar os precedentes na União Soviética.
Além disso - se nos primeiros anos da era Putin os professores tinham liberdade de escolha em relação aos manuais escolares - agora voltamos ao manual único de história, imediatamente imposto também nos territórios ocupados. Basta pensar que nesse manual a história tradicional - fundadora - da Rússia foi até alterada: nem é mais admitido - ou está escondido - que a Rússia nasceu em Kiev.
Quais serão os resultados desses programas de "russificação" nas crianças ucranianas - algumas delas já mais velhas – o veremos nos próximos meses e anos: mas claramente ninguém não pode se tornar "russo" da noite para o dia.
Lemos que o exército russo está com dificuldades de recrutamento (e que esta seria uma das razões da “russificação” dos jovens ucranianos). Qual é a situação do recrutamento para apoiar esta guerra?
Na Rússia se fala – aliás, já há algum tempo - que Putin quer promover uma mobilização geral com um chamado especial às armas. Na verdade, isso ainda não aconteceu, por alguns motivos.
Preciso antes esclarecer que - segundo analistas que considero confiáveis - a opinião pública russa está atualmente dividida em três grandes grupos: um terço da população é absolutamente a favor da guerra, um terço é contra, o outro terço está assustado com a ideia de guerra e nem quer falar sobre isso, efetivamente removendo o problema. Mas mesmo aquela parcela que aplaude os bombardeios das cidades ucranianas não está tão disposta a enviar seus filhos para lutar.
Das indiscrições recolhidas pelos jornalistas e pelos próprios soldados russos feitos prisioneiros na Ucrânia - por mais confiáveis que possam ser seus testemunhos - sabemos que numerosos militares de carreira estão se recusando a lutar, não porque sejam adversários convictos, mas simplesmente porque não querem ir morrer.
As perdas, especialmente nas primeiras semanas, foram devastadoras. Como resultado, sabemos de soldados demitidos ou enviados de volta a julgamento por sua recusa, mesmo que estes não tenham sido juridicamente definidos como desertores.
Também sei de cerca de quinze agências de recrutamento - espalhados pela Rússia – em que foram provocados incêndios. Algumas bases militares também foram incendiadas. Esses não são sinais de clara oposição à guerra, mas sim de uma evasão pragmática da guerra. Os protagonistas são jovens russos: ao queimar seus documentos, talvez tenham pensado em evitar a convocação.
São os jovens russos de que já nos falou, pouco dispostos a obedecer a Putin?
Vários desses jovens foram presos. Alguns eram jovens já conhecidos como simpatizantes da oposição. Outros não. Parece-me prevalecer uma atitude não politizada: para evitar sentenças mais pesadas, eles dizem que agiram sob o efeito de álcool ou apenas para fazer uma bravata.
Também tenho informações de muitos jovens com menos de 30 anos - milhares - que deixaram a Rússia nos últimos meses, mudando-se para países ex-soviéticos - para a Armênia em vez da Geórgia - onde podem sair sem visto e permanecer lá por um longo período de tempo: eles esperam que, no meio tempo, termine o clima de convocação às armas. O governo percebeu isso e, para tentar, ao menos em parte, remediá-lo, propôs a isenção do recrutamento militar aos técnicos de informática de que o país tem hoje grande necessidade.
Assim como de 1979 a 1989 - os anos da guerra no Afeganistão - não foram contados os subornos para evitar o serviço militar e o front, então presumo que o mesmo esteja acontecendo agora.
Essas são algumas das razões pelas quais - até agora - Putin não ousou declarar a mobilização e o chamado geral às armas.
Então, quem está indo lutar na Ucrânia?
Pelas listas de mortos e prisioneiros feitos na Ucrânia é possível observar como aqueles que - mais facilmente - foram lutar vêm de lugares remotos da Rússia, do Cáucaso e do Extremo Oriente. Não é coincidência que jovens de Moscou, São Petersburgo e outras grandes cidades não estejam nessas listas.
Trata-se jovens de famílias muito pobres vindos das aldeias: pobres também culturalmente, mais facilmente manipuláveis pela ideologia nacionalista; eles se alistaram para ter uma fonte de renda "segura".
Isso também explica os episódios de saques dos quais muitos infelizmente se tornaram protagonistas na Ucrânia. Basta dar uma olhada nos mercados on-line: eles estão cheios de mercadorias - eletrodomésticos, móveis e até carros - para revender e colocar a render o saque que esses soldados roubaram com risco da vida.
Esses jovens muitas vezes não falam russo e não têm parentes na Ucrânia, ao contrário dos jovens russos das grandes cidades: cinicamente - de acordo com o regime - podem atirar em seus pares ucranianos.
Os recrutas não deveriam estar no front...
Sim, mas sabemos de centenas de casos que de fato desmentem a lei, que existe nesse sentido. De fato, isso é facilmente contornado fazendo com que os recrutas assinem contratos - inclusive retroativos - com os quais se tornam militares de profissão.
O que o movimento das mães russas está fazendo para salvar seus filhos?
Assim como esse movimento foi muito ativo em guerras anteriores, agora me parece bastante inativo. Certamente muitas coisas mudaram. A primeira guerra chechena ocorreu em condições de liberdade de imprensa muito diferentes das atuais, enquanto a segunda guerra chechena ocorreu no início da repressão que agora desemboca na censura que impede até mesmo proferir a palavra guerra.
Então é muito mais provável hoje - para essas mães - serem detidas e presas. O movimento coletivo, portanto, tem margens de ação muito limitadas. E, no entanto, parece-me que - mesmo em nível individual - falte algo: durante as guerras que mencionei, as mães iam à Chechênia para recuperar os corpos dos seus filhos, enquanto agora nenhuma mãe sente-se disposta a ir para a Ucrânia, apesar da disponibilidade demonstrada pelas autoridades ucranianas.
Tudo é objetivamente muito mais difícil: a fronteira está substancialmente fechada, devem ser solicitados vistos difíceis ou impossíveis de obter e correm o risco de serem acusadas de alta traição. Resta a amargura pela inação. Para mim, além disso, é chocante ouvir algumas mães dos mortos falarem publicamente a favor guerra.
Quantos russos caíram na Ucrânia até hoje, até onde você sabe?
As estimativas das autoridades ucranianas chegam, até o momento, a 37.000 baixas entre os militares russos. Esse número não é confirmado por fontes internacionais.
Por mais que esse número possa ser enfatizado, certamente estamos diante de um número muito elevado, já superior ao número total de soldados russos que morreram nos 10 anos de guerra no Afeganistão: um número que poderia ter produzido, na minha opinião, um movimento de protesto sensível que, no entanto, não aconteceu.
Não houve realmente nenhum sinal de protesto dos familiares dos militares russos?
Algumas semanas atrás - em jornais locais da Buriácia, uma pequena república autônoma na fronteira com a Mongólia, com uma população étnica mongol-budista de onde muitos soldados partiram para a Ucrânia - surgiram notícias de um grupo de esposas que recorreu ao governador pedindo que seus maridos fossem trazidos de volta do front. Podemos dizer que foi um protesto. Mas as notícias logo desapareceram e não soubemos mais nada sobre essas mulheres.
O que o governo russo está fazendo para incentivar o alistamento?
Pude ver, justamente nos últimos dias, um cartaz publicitário do corpo de guardas de fronteira: bem, pela metade - até graficamente - esse cartaz representa a vida feita de dificuldades dos jovens russos que estudam e procuram trabalho, pela outra metade apresenta a facilidade da carreira militar.
A mensagem é clara: para que serve um diploma quando tudo é muito mais fácil na vida militar? Isso também mostra o nível cultural e intenção a longo prazo deste regime.
Parece que, de algumas regiões, os voluntários dispostos a pegar em armas foram liberados de qualquer vínculo ou impedimento anterior, como, por exemplo, uma ficha criminal suja. O exército russo está, portanto, recrutando qualquer um, desde que esteja disposto a arriscar sua vida na Ucrânia.
O Papa Francisco - numa entrevista - falou de militares chechenos e sírios empregados na Ucrânia: o que você sabe?
Sim, falou-se muito dos sírios, mas em nível da propaganda, que também veiculou fotos de militares sírios e centro-africanos prontos a partir para a Ucrânia. Na realidade, parece-me que bem poucos sírios foram encontrados nas listas de mortos e prisioneiros feitas pelos ucranianos.
É diferente o caso dos chechenos que participaram através das tropas escolhidas postas à disposição de Putin pelo ditador Kadyrov.
Existem mercenários do grupo “Wagner” na Ucrânia? O que é o "Wagner"?
Existem vários testemunhos da presença do grupo Wagner na Ucrânia, em particular em Severodonetsk. Esses mercenários se distinguem pela experiência adquirida em guerras ao redor do mundo. São assassinos bem preparados, à sua maneira. Eles lutaram na Síria e, portanto, sabem como travar a guerra urbana, talvez a mais suja e sangrenta. Eles têm uma preparação que as tropas do exército russo – exceto aquelas das forças especiais - em média não têm.
Os "Wagner" são, como se costuma dizer, contractor, ou seja, soldados profissionais pagos para guerrear com ditadores ou para defender grandes interesses privados. Eles geralmente são ex-militares do exército russo. Não são muitos, mas certamente atendem à forte demanda por mercenários de alto nível.
O grupo "Wagner" está associado à figura de Evgenij Prigožin, o chamado "cozinheiro de Putin", um empresário do setor alimentício de São Petersburgo que fez da desinformação sua segunda indústria global: milhares de pessoas escrevem por sua conta no mundo para construir fake news. Como se sabe, essa fábrica de desinformação está sujeita a sanções dos EUA após o russiagate e as influências nas eleições estadunidenses de 2016.
Prigožin, portanto, inventou o grupo "Wagner", mas não está claro quanto este seja realmente financiado por ele, porque, provavelmente, sozinho, ele não tem todo o dinheiro necessário. Ele é certamente amigo de Putin e de seus guarda-costas e ganhou todos os contratos de fornecimento de alimentos do exército russo. O seu grupo está certamente à disposição do Ministério da Defesa e dos serviços secretos russos para todas as operações em que eles não queiram aparecer diretamente.
Na Síria - é certo – o “Wagner” realizou operações militares em estreita coordenação com as forças armadas russas, como uma unidade do exército russo. É fácil, portanto, supor que o "Wagner" receba financiamento do estado russo.
No clima que você descreveu tão bem da Rússia, qual é a condição da Igreja Católica?
Há pelo menos vinte anos as estruturas da Igreja Católica na Rússia certamente não têm uma vida fácil. Com Boris Yeltsin foi aprovada a lei sobre as "religiões autóctonas": são a religião cristã ortodoxa, judaica, budista e islâmica. Enquanto todas as demais religiões e/ou igrejas já estavam desde então – e ainda mais hoje – sob suspeita de serem agências estrangeiras.
As religiões autóctonas podiam e podem fazer praticamente o que querem, enquanto as igrejas - católica e protestante - devem pedir autorização para tudo: educar, ter bens, fazer caridade.
Ninguém falou muito sobre isso nos últimos anos em nome da vida tranquila. O Vaticano sempre buscou o diálogo, como é, aliás, de sua natureza. Mas tem havido muitos casos de padres católicos expulsos ou com visto negado para a Rússia para impedir suas atividades. As estruturas da Igreja Católica sofreram uma hostilidade substancial.
Neste momento - como se sabe - o patriarca Kirill está especificamente do lado do Kremlin na "operação militar especial" e o patriarcado tornou-se o braço do estado russo em uma explosão de nacionalismo. Os sacerdotes ortodoxos que se opõem à guerra foram afastados das paróquias.
Aqueles que condenaram abertamente a guerra foram presos: alguns, infelizmente, foram denunciados pelos fiéis. Acredito que a moeda de troca com o patriarcado pelo Estado pode incluir uma dificuldade de vida maior do que outras igrejas, tendo em vista uma substancial exclusividade ortodoxa: a ideia básica é que quem é russo de nascimento - mesmo que seja ateu – só pode ser ortodoxo.
Que perspectivas você vê para organizações e ONGs ligadas à Igreja Católica apoiadas por financiamentos das igrejas dos países europeus?
Eu vejo a possibilidade de que essas organizações possam ficar presas nas malhas da nova lei sobre ingerências estrangeiras na Rússia. A lista dos "agentes estrangeiros" agora inclui centenas de ONGs, associações e indivíduos. Pelo que sei - pelo menos até agora - as realidades religiosas ainda não entraram na lista.
Para a lei, porém, basta ter vínculos com o mundo exterior, receber financiamento, manter relações que possam ser configuradas em termos de subordinação ao exterior para acionar seus mecanismos ameaçadores. Portanto, a meu ver, para além das dioceses propriamente ditas, podem ser colocadas em risco as realidades religiosas que gerem atividades educativas, formativas, sanitárias e afins.
A última inovação introduzida na lei diz respeito expressamente às atividades educativas com crianças. Assim, voltamos ao ponto de onde partimos nesta entrevista: das crianças e das intenções do regime de "russificar" todas elas.